Em 10 anos, Lei de Acesso à Informação muda patamar da transparência no País

O Brasil se juntou, há 10 anos, a uma lista que, à época, já tinha quase 100 países: a de territórios com uma política sistematizada para a consulta de dados de interesse público. A Lei de Acesso à Informação (LAI), ainda que tardia, foi uma conquista num contexto em que havia resistência em mostrar as entranhas dos órgãos governamentais – veio na sequência da obrigatoriedade de portais de transparência e da divulgação de salários de servidores.
Por Katia Brembatti, Especial para o Estadão 18 de novembro de 2021 | 05h00
24/11/2021 11:13hs

O Brasil se juntou, há 10 anos, a uma lista que, à época, já tinha quase 100 países: a de territórios com uma política sistematizada para a consulta de dados de interesse público. A Lei de Acesso à Informação (LAI), ainda que tardia, foi uma conquista num contexto em que havia resistência em mostrar as entranhas dos órgãos governamentais – veio na sequência da obrigatoriedade de portais de transparência e da divulgação de salários de servidores.

A Lei 12.527 comemora dois aniversários por ano, por ter duas datas de nascimento: em 18 de novembro do 2011, com a publicação em Diário Oficial, e em 16 de maio de 2012, quando efetivamente passou a vigorar – os órgãos públicos tiveram seis meses de prazo para se adequar e criar sistemas de atendimento.

A legislação permite pedidos para todas as esferas (municipal, estadual e federal) e todos os Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Em algumas circunstâncias específicas, também organizações e até empresas privadas são obrigadas a responder às dúvidas dos cidadãos.

Na época da criação da lei, muito se discutia sobre a divulgação de documentos do tempo da ditadura, mas a LAI é um instrumento muito mais usado para olhar para o passado recente (como decisões de governo), para o presente (a partir de dados de cenário atual) e para o futuro breve (sobre medidas que estão em avaliação para entrar em vigor).

Especialistas consultados pelo Estadão apontam que, como se trata de uma ferramenta de revelação, em um momento em que muito se tenta esconder, são recorrentes nos últimos anos as críticas aos retrocessos, com aumento de negativas de acesso e transparência cada vez mais opaca.

Mas, para Maria Vitória Ramos, cofundadora e diretora da Fiquem Sabendo, agência de dados independente especializada no acesso à informação, também é o caso de celebrar os avanços representados por uma lei com regras claras, considerada referência em relação aos parâmetros estabelecidos em outros países.

O pesquisador canadense Gregory Michener, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que conhece bem a realidade da legislação de acesso a informações do seu país de origem, dos Estados Unidos e do Brasil, comenta que os princípios da lei brasileira são adequados, no geral, mas que a implementação enfrentou percalços. Ele também critica a ausência de sanções e supervisão suficientes. Ele também destaca que a lei funciona bem mais em nível federal do que municipal.

O Estadão preparou um compilado que permite entender a importância dessa legislação e os desafios que a LAI enfrenta atualmente. Confira:

1. Entrada tardia

A Suécia tem leis sobre o tema há mais de 200 anos. A adesão a essas práticas pelo mundo começou a crescer a partir de 1948, no contexto do fim da Segunda Guerra, puxada pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Mas, por aqui, o projeto de lei que serviu de base para a LAI só começou a tramitar no Congresso em 2003.

O foco era fazer cumprir o princípio constitucional de que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral”, mas faltava estabelecer as regras. Também se discutia o fim do “sigilo eterno” que, até então, impedia a consulta de alguns documentos oficiais. Naquele momento, a Comissão da Verdade cobrava acesso aos registros da ditadura. Enquanto isso, em escala global, o mundo vivia o abalo do WikiLeaks, a divulgação de telegramas trocados por entidades diplomáticas e governamentais, com um amplo debate sobre o que deveria ser sigiloso e o que era de interesse público. Foi nesse contexto que a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) juntamente com a Transparência Brasil capitanearam o processo, ao lado de outras sete entidades, forçando que o Congresso fizesse andar o projeto de lei, culminando com a aprovação em 2011.

2. Reportagens de peso

Os primeiros efeitos percebidos, assim que a LAI entrou em vigor, foram em forma de reportagens. Ao longo dessa década, centenas de reportagens foram feitas com base na lei de acesso, revelando algumas situações que só puderam ser conhecidas por meio de um instrumento. A série Farra do Fies, que ganhou alguns dos principais prêmios jornalísticos de 2015, foi uma delas.

Em 2021, alguns dos dados conseguidos via lei de acesso pautaram a CPI da Covid-19, como a maior agilidade do governo para comprar hidroxicloroquina do que vacina e também a entrada de um lobista 25 vezes em um prédio público. Ainda por meio da LAI, foi possível saber a listagem completa de pensionistas filhas de militares e seus altos benefícios.

Os assuntos trazidos à tona são recorrentes, como esses três casos dos últimos dois meses: a revelação de que o programa federal de adoção de florestas não recebeu verbas, a negativa do Ministério da Cidadania para explicar os parâmetros decisórios do Auxílio Brasil e a descoberta de que, por risco político, servidores tentam cercear acesso a dados públicos, principalmente quando sabem que os requerentes são jornalistas.

3. Vidas salvas

Algumas dessas denúncias divulgadas por reportagens via LAI são capazes de impactar diretamente o cotidiano das pessoas. Uma das mais marcantes foi feita pelo O Globo em 2016, sobre 153 recusas da Força Aérea Brasileira (FAB) para transporte de órgãos, inclusive com o registro de mortes em decorrência. Depois da publicação, a questão foi colocada em prioridade e 258 transplantes foram possíveis no ano seguinte, por órgãos transportados pela FAB.

Fabiano Angélico, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), lembra de uma cobrança via LAI que levou a uma mudança de política pública. Uma reportagem mostrou que alguns bairros da capital paulista não tinham a oferta de determinadas especialidades médicas – que foram providenciadas na sequência. Outro exemplo foi a descoberta de que crianças estavam dormindo dentro de vans por falta de espaço em abrigos. A partir da reportagem, a Justiça determinou que medidas fossem tomadas para resolver o problema.

4. Uma lei para todos

Engana-se quem acha que a LAI é uma ferramenta de uso exclusivo da imprensa. É um recurso disponível para qualquer pessoa. Tanto que mais de 1 milhão de pedidos de informação já foram feitos para o governo federal – não há um sistema que contabilize as demandas que chegaram para Estados e municípios e para os demais poderes, como Legislativo e Judiciário. Para estimular os brasileiros a usar mais esse recurso cívico, neste dia 18, em comemoração dos 10 anos da lei de acesso, foi lançada a Wikilai, uma plataforma colaborativa com mais de 90 verbetes e modelos de como fazer pedidos.

5. Cidades sem LAI

Ao contrário do que acontece em outros países, no Brasil a lei de acesso ficou muito focada na esfera federal. Esse ainda é um entrave para o cumprimento pleno da legislação, mesmo dez anos depois de criada. De cada cinco municípios brasileiros, apenas um regulamentou a lei. Sem essa etapa formal, a legislação não entra plenamente em vigor.

Para tentar diminuir essa barreira, existe a iniciativa Regulamenta LAI, plataforma em que qualquer cidadão pode, seguindo um modelo prévio, entregar à Câmara Municipal da cidade em que mora uma proposta de projeto de lei para provocar a regulamentação. Marina Atoji, gerente de projetos da Transparência Brasil, salienta que o foco sobre o cumprimento da LAI está direcionado para o governo federal, deixando de lado o que está acontecendo nos municípios e também no Legislativo, no Judiciário e no Ministério Público.

Em nível municipal, há ainda uma série de dificuldade técnicas. Em muitos sites de prefeituras, não há nem mesmo onde solicitar informações – e, quando há, geralmente a demanda não foi registrada ou a resposta não é entregue. O Estadão fez pedidos para as 645 prefeituras paulistas, no ano passado, e dois terços não atenderam a LAI.

6.Fala.br

Para tentar minimizar entraves nos municípios menores, o sistema Fala.br, lançado em 2019 pelo governo federal, foi disponibilizado para gestores municipais. É uma ferramenta sem custo, mas ainda com baixa adesão. Novamente a falta de regulamentação da LAI é um bloqueio – é uma condição para aderir ao sistema. De acordo com dados da Controladoria-Geral da União (CGU), o sistema concentra as demandas apresentadas a 300 órgãos do governo federal e a outros mais de 2 mil órgãos. Entre as várias vantagens, como diminuição de custos e monitoramento de estatísticas, o Fala.br permite a preservação de identidade (que é diferente do anonimato – uma vez que a ferramenta registra quem fez o pedido, mas não informa os dados para o órgão público que responderá a demanda).

7. Embate com a LGPD

O obstáculo do momento para a LAI é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada em 2018 e que entrou em vigor em 2020. Algumas negativas a pedidos de informação passaram a mencionar a nova legislação, citando um suposto conflito entre publicidade e privacidade. A situação causou insegurança jurídica para servidores encarregados de responder aos pedidos de informação.

Há divergências sobre o assunto, mas os defensores da LAI alegam que a LGPD não é uma regra de privacidade, e sim uma política que estabelece quais os procedimentos devem ser tomados para a guarda e compartilhamento de dados pessoais. A LAI tem um dispositivo para a proteção de informações pessoais, que serve como forma de ter acesso parcial a um documento público.

8. Classificação eterna

Um dos principais solavancos que a LAI levou nos últimos tempos foi a tentativa de mudar o sistema de classificação de sigilo. O vice-presidente Hamilton Mourão, ao assumir interinamente a Presidência, em 2019, tentou flexibilizar as regras, ampliando a quantidade de cargos e pessoas com competência para pôr sigilo em documentos. A alteração foi revogada por causa de pressão de entidades.

A LAI estabelece que algo em segredo pelo prazo de cinco anos (classificação reservada), 15 anos (classificação secreta) ou 25 anos

(classificação ultrassecreta, podendo ser prorrogada uma vez, por igual período). Quanto maior o tempo, mais alto deve ser o cargo de quem decreta o sigilo.

Para o aprimoramento da LAI, um dos caminhos necessários é criar um repositório, para que os documentos que um dia foram colados em sigilo um dia venham a público. Atualmente, há uma negociação no Congresso Nacional para que uma política nesse sentido seja instituída, com um procedimento claro de desclassificação e acesso. Mais de 100 mil documentos estão protegidos por sigilo no governo federal.

9. Efeito pandemia

Logo que milhões de servidores públicos foram deslocados para trabalho remoto, por causa da pandemia, a partir de março de 2020, houve uma tentativa de suspender algumas regras da LAI, como prazos para respostas. A justificativa, num primeiro momento, foi a dificuldade para consultar sistemas e documentos. A Medida Provisória (MP) foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Entre os argumentos, prevaleceu a lógica defendida por organizações, como a Open Knowledge Brasil, que é justamente em momentos críticos que mais se precisa de informações.

10. Omissões em alta

Além de pedidos negados ou demora para as respostas, também aparecem no painel de monitoramento os casos de omissão – quando as demandas são solenemente ignoradas. Esse tem sido um dos focos da CGU, uma espécie de guardiã da LAI no Brasil, já que entre as brechas da legislação está a ausência de uma estrutura pública que fique oficialmente responsável por garantir o cumprimento da lei, como é no México, por exemplo.

Fabiano Angélico, pesquisador da FGV-SP, destaca a situação nacional em um ranking global de direito à informação, em que o Brasil aparece mal em dois quesitos: procedimentos e exceções/recusas.

Confira reportagens do Estadão com base na Lei de Acesso:

Lobista no Ministério

Em agosto, o Estadão revelou que o ex-secretário da Anvisa José Ricardo Santana, apontado pela CPI da Covid como “lobista” para tentar favorecer a Precisa Medicamentos em licitações, esteve ao menos 25 vezes no Ministério da Saúde.

"Risco Político"

Documentos obtidos pelo Estadão mostraram, em setembro, que servidores do Palácio do Planalto têm orientado os ministérios a avaliar o “risco político” e omitir informações nas respostas aos pedidos solicitados por meio da Lei de Acesso à Informação.

Sem verba

Um ano após ser instituído pelo governo federal para incentivar a iniciativa privada a financiar a proteção de unidades de conservação, o programa de “doação” não recebeu um centavo.

Farra do Fies

Em 2015, o Estadão mostrou que o investimento federal no programa de financiamento estudantil aumentou 13 vezes entre 2010 e 2014.